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Morre aos 91 anos o Jornalista e Escritor Carlos Heitor Cony

Morre aos 91 anos o Jornalista e Escritor Carlos Heitor Cony

07/01/2018 às 09h17 Atualizada em 07/01/2018 às 12h17
Por: RegiãOnline
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Correio*

 

Carlos Heitor Cony publicou 17 romances, além de diversos livros de crônicas: um dos maiores intelectuais do Brasil (foto/divulgação)

Sua estreia na literatura se deu com os romances A Verdade de Cada Dia e Tijolo de Segurança. Lançados em 1957 e 1958, respectivamente, os livros receberam o Prêmio Manuel Antônio de Almeida, abrindo uma carreira de distinções literárias que mais tarde incluiriam o Prêmio Jabuti (em 1996, 1998 e 2000) e o Prêmio Machado de Assis, em 1996, pelo conjunto da obra, além da comenda de Artes e Letras concedida em 2008 pelo governo francês.

A sólida formação intelectual do escritor carioca começou a ser construída durante  os anos passados no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido, de 1938

a 1945, onde entrou por vontade própria (“entrei porque achei bonito ser padre. Bonito e difícil”, explicou nos anos 60).

Filosofia e jornalismo

No período no seminário, Carlos Heitor Cony estudou os clássicos gregos e romanos, praticou diversas línguas, conheceu música lírica e, principalmente, trocou muitas ideias, em especial consigo mesmo. Em 1946, aos 20 anos, como quem busca um nova direção, o ex-seminarista ingressou na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.

Antes da estrear na ficção, Cony iniciou a vida profissional como jornalista - função que nunca abandonaria.  Em 1952, ele, que era filho de um modesto jornalista, Ernesto Cony Filho, entrou para o Jornal do Brasil e, mais tarde, foi redator do Correio da Manhã.

Foi preso diversas vezes durante a ditadura militar. Aliás, em 2004, o Ministério da Justiça concedeu a ele uma pensão vitalícia de R$  23 mil, valor correspondente ao salário que receberia como redator-chefe de uma publicação.

Um romance por ano

Após deixar o Correio da Manhã, Cony entrou para a Manchete, onde atuou também no departamento de teledramaturgia, participando de projetos como a minissérie A Marquesa de Santos (1984) e a novela Dona Beja (1986). Em meados dos anos 1960, Cony já tinha oito livros publicados - além de ficção, coletâneas de crônicas.

“Todos eram romances de forte afirmação do individualismo, numa época e num país com pouca tolerância para com individualismos. As esquerdas viam Cony com desconfiança, apesar de seus livros saírem por uma editora sobre a qual não restava a menor dúvida: a Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, um homem ligado ao Partido Comunista. Ênio podia não concordar com Cony quanto à linha apolítica e alienada que imprimia a seus romances, mas não abria mão de tê-lo entre seus editados. “Cony era talvez o maior escritor profissional do Brasil - produzia um romance por ano, firmara um público certo e não dava bola para os críticos”, escreveu Ruy Castro no final dos anos 1990.

Ditadura e política

Em 1967, porém, Cony lançaria um livro seminal em sua trajetória: Pessach, a Travessia, sobre um escritor carioca que, em pleno regime militar, rejeita qualquer tipo de posição política mais radical, assim como renega sua origem judaica. Pouco depois de

completar 40 anos,  ele se comprometeu, involuntariamente, com questões políticas. O livro continha crítica dura ao Partido Comunista.

Em 1999, o autor voltaria ao tema com Romance Sem Palavras, no qual continuava a história do escritor Paulo. Em entrevista ao O Estado de S. Paulo em 2008, Cony relembrou o período da ditadura ao falar do romance O Ventre - e tratar da melancolia e do pessimismo que são normalmente associados à sua obra, influência, naquele instante, do pensamento de Sartre.

“Havia nessa época um tom exagerado de bossa nova, de desenvolvimento, que não me encantava. Da mesma forma que não aderi à literatura engajada que surgiu depois da Revolução de 1964, mesmo depois de preso pelos militares. Nessa época, escrevi Antes, o Verão, um romance completamente alienado, sem nenhuma referência política, assim como Balé Branco, que veio em seguida. Mesmo Pilatos, que saiu em 1973, quando a situação continuava difícil. É curioso que alguns críticos entenderam ao contrário, identificando o homem castrado do romance como uma alusão ao que viviam os cidadãos, alijados politicamente. Mas não era nenhuma metáfora para mim. Minha crítica aberta estava nos textos que escrevia para os jornais, especialmente o Correio da Manhã”, disse.

A cadela Mila

Pilatos é ainda hoje considerado por muitos o grande livro de Cony - inclusive pelo próprio autor. Lançado em 1973, narra a história de um homem que, após sofrer um acidente, vaga pelas ruas do Rio com o órgão sexual mutilado em um jarro, encontrando diferentes personagens pelo caminho.

Intelectual cético e meio cínico que foi casado cinco vezes e teve três filhos, o escritor construiu uma imagem pública de rabugento e pessimista, mas os amigos dizem que ele até se divertia com isso.

Na verdade, o mestre Cony era um homem lírico capaz de escrever que nunca amou e foi amado por alguém como por a cachorra Mila, com quem conviveu por 13 anos e a quem dedicou uma emocionante crônica de despedida.

QUASE MEMÓRIA VIROU FILME DE RUY GUERRA

Um dos maiores realizadores do Cinema Novo, o diretor moçambicano Ruy Guerra, 86 anos, adaptou o livro autobiográfico Quase Memória (1995), de Carlos Heitor Cony (1926-2018), para a telona. No romance, Cony, já maduro, recebe um pacote que ele tem certeza ser do seu pai, o modesto jornalista Ernesto, morto há dez anos. Sem abri-lo, encara o pacote o resto do dia e relembra episódios da vida com o pai, figura adorável e patética.

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No filme Quase Memória, ainda inédito no circuito comercial, o ator baiano João Miguel vive o pai de Cony (foto/Divulgação)

Já no longa-metragem exibido  em festivais no país, mas ainda inédito no circuito comercial, Cony se transforma em dois personagens: Carlos Velho (Tony Ramos), com mais de 70 anos, e Carlos Jovem, lá pelos 40 anos (Charles Fricks), que se encontram no que Guerra chama de “bolha do tempo”. É o ponto de partida do roteiro para uma reflexão sobre o processo da memória. O ator baiano João Miguel e a atriz Mariana Ximenes também integram o elenco interpretando Ernesto e a mãe de Carlos Heitor Cony.

Para o crítico carioca Rodrifo Fonseca, a atuação de João Miguel é um dos pontos altos do filme: “Ele faz do personagem um Forrest Gump, capaz de interferir em episódios importantes da evolução histórica brasileira com suas maluquices”.

Nas palavras de Ruy Guerra (Os Cafajestes/1962, Os Fuzis/1964), “Quase Memória é um livro magnífico que conta as aventuras de um pai que faz lembrar o meu. É o livro que eu gostaria de ter escrito sobre o meu pai. Só me restou aceitar a sabedoria do destino e cumprir a minha promessa de infância, de outro modo, sob outra forma, com um outro pai”.

Quase Memória ganhou dois prêmios Jabuti: melhor romance e livro do ano, tendo vendido mais de 400 mil exemplares. Em 2014, a editora Nova Fronteira reeditou o best-seller. Ao todo, Carlos Heitor Cony escreveu 17 romances.

ARTISTAS E AMIGOS LAMENTAM A MORTE DO ESCRITOR

Escritores, amigos e artistas lamentaram a morte de Carlos Heitor Cony (1926-2018).  “É sempre lamentável quando morre um jornalista e escritor da relevância do Cony. A gente está perdendo uma geração... É uma pena. Livros como Quase Memória e O Piano e a Orquestra são muito importantes”, disse Milton Hatoum.

“Primeiro que eu gostava muito dele como amigo. E, para a minha geração, ele foi um jornalista e escritor muito importante. Com o livro O Ato e o Fato ele enfrentou a ditadura e tudo aquilo que esmagava a gente. Ele mostrou que era possível resistir escrevendo”, afirmou Inácio de Loyola Brandão.

“Eu lamento muito, gostava da obra e dele pessoalmente. O bom é que ele foi ativo até o final. Um intelectual rigoroso que vai fazer muita falta”, escreveu Luis Fernando Verissimo.

“Para a minha geração, criada nuns restos de beletrismo, Cony foi, com O Ventre, romance de estreia, a revelação de uma saudável literatura de maus modos. Depois, o jornalista que se opôs de bate-pronto ao golpe. Parecia morto para a literatura quando, em 1995, ressurgiu com Quase Memória, romance forte e tocante, e a ela permaneceu fiel até o fim, deixando sua marca não só na ficção como na crônica”, disse Humberto Werneck.

“Ele conjugava humanismo com uma sólida formação intelectual. Também tinha uma sólida formação teológica, mas se dizia incrédulo. Eu acho que ele tinha uma certa ‘nostalgia de Deus’. Mas tem uma história que eu gostaria de contar. Nós conversávamos muito sobre cachorros. Ele tinha uma paixão por uma cadelinha que se chamava Mila. Cony dizia: ‘Nunca amei tanto como amei minha Mila. E eu nunca fui amado por alguém como ela me amou’. O livro Quase Memória se deve a Mila também. Cony, que estava há muitos anos sem escrever, notou que ao pressionar as teclas da máquina de escrever, ele apaziguava as dores da cachorrinha que estava doente. Era como se ela dissesse: ‘Escreve, Cony; escreve, Cony...’”, afirmou Nélida Piñon.

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