No Pantanal sul-mato-grossense, a esperança tem formonçafari
a de onça. No bioma onde o maior felino da América muitas vezes é sinônimo de medo e de ameaça ao gado – e onde matar um animal pode ser motivo de orgulho –, um projeto está promovendo a conservação da espécie com o auxílio do turismo de observação. E a esperança vem dando frutos. E netos. Literalmente. A reportagem foi publicada pelo Jornal O Estado de São Paulo, neste domingo (14).
Esperança é o nome de uma das primeiras onças acompanhadas pelo Onçafari, um projeto que importou e adaptou técnicas de observação de leopardos usadas na África para se aproximar do nosso maior gato na planície pantaneira. O trabalho, que teve início em 2011 por iniciativa do ex-piloto de corrida Mario Haberfeld, usa um recurso conhecido como habituação, no qual os pesquisadores se aproximam das onças com carros até que elas se acostumem com aquela presença e deixem ser vistas e estudadas. Guias e turistas em nenhum momento saem do veículo. A ideia é que o bicho não se acostume com a figura humana.
Isso, ao lado de 80 armadilhas fotográficas espalhadas pelo Refúgio Ecológico Caiman, uma propriedade de 53 mil hectares, vem permitindo entender melhor o comportamento das onças, o que traz pistas de como lidar com a espécie para que não seja uma ameaça ao pantaneiro. Por outro lado, permite que turistas e locais a vejam de perto, se encantem e conservem. O encantamento é a parte mais fácil dessa equação – como pôde constatar a reportagem em visita ao Refúgio Ecológico Caiman, em Miranda.
Era fim da tarde de domingo. Recebemos pelo rádio a dica de que uma onça se alimentava não muito longe. Um grupo de 11 pessoas, que reunia pesquisadores, ambientalistas e jornalistas, subiu em uma caminhonete aberta adaptada ao safári, e rumamos para lá.
À beira da estrada, onde uma vegetação florestada mais alta cobria um pequeno riacho, a onça havia se entocado para pescar. Os guias que passaram a dica tinham conseguido vê-la antes de ela se esconder. Nós só conseguíamos ouvi-la. Um barulho seco, da espinha do peixe se quebrando. E a expectativa de que ela poderia se irritar com a nossa intromissão na hora de sua refeição.
O motorista decidiu contornar a matinha para tentar vê-la por trás. Mas acabamos atolados em um alagado, a apenas alguns metros de uma onça.
Enquanto esperávamos o resgate, a tensão aumentava na mesma proporção em que éramos atacados por mosquitos. Será que descemos para empurrar o carro? Na cabeça, a lembrança da palestra era uma tentativa de buscar alguma racionalidade: uma onça dificilmente ataca o gado quando o grupo é grande, prefere animais sozinhos. O risco e o esforço não valem a pena. Além disso, fizemos uma barulheira com o motor na tentativa de desatolar. Ficaria ela intimidada? Mas e outros animais? Na água não haveria jacarés?
Escurecia e outras imagem vinham à mente, a de duas camisetas à venda na lojinha da fazenda: “Uma onça me viu” e “Eu doei sangue pelo Pantanal”, já que os mosquitos seguiam implacáveis.
Ao sermos enfim rebocados, descobrimos que a onça continuava ali. Voltamos à estrada e paramos o carro. Dessa vez, ela estava muito mais perto, à beira da estrada. Imponente, nos lançou um olhar desinteressado e atravessou tranquilamente a estrada na nossa frente. Entrou no campo do outro lado e seguiu seu caminho. Ficamos olhando, admirados, até ela desaparecer.
‘Grande mãe’. Soubemos depois que aquela era Esperança. E uma boa notícia. Dava para perceber, pelo abdome flácido e mamas puxadas, que ela tinha acabado de ter filhote.
Esperança é considerada a “grande mãe” do projeto. Até então se sabia que ela tinha tido, desde 2011, sete filhos e cinco netos. Ela ainda não mostrou o novo filhote (ou novos). Ao longo desse período, o projeto já identificou 83 onças diferentes na Caiman, e fez descobertas importantes sobre a espécie. Ao contrário do que se imaginava, o animal não é exclusivamente noturno, mas tem atividade também ao longo do dia. Outra crença desfeita é de que são animais que vivem sempre isolados. Segundo a bióloga Lilian Rampim, coordenadora do projeto, com armadilhas fotográficas se viu uma carcaça de gado ser compartilhada por quatro animais diferentes, duas fêmeas com seus filhotes.
Até mesmo a noção sobre risco ao gado está sendo modificada. Na Caiman, onde fica a base do Onçafari, a perda de gado para onça oscila entre 1% a 1,5% ao ano. “É um animal oportunista. Se uma vaca doente é deixada sozinha no pasto, é uma presa fácil, a onça vai pegar e terá comida por três dias. Muito fazendeiro usa isso como desculpa para matar onças, mas às vezes ele abandonou a vaca ali”, conta Lilian. Segundo os pesquisadores, há soluções, como colocar no meio do gado animais maiores, com chifres, que vão intimidar o felino. Mas a melhor saída é manter a vida selvagem. “Deixando os outros animais dos quais ela se alimenta vivos, ela não tem por que pegar o gado”, diz.
Para isso, é importante também preservar o ambiente natural. Mas o Pantanal vem sofrendo com alterações provocadas pelo homem. Segundo monitoramento do Instituto SOS Pantanal, o bioma já perdeu 15,7% da sua vegetação nativa, em grande parte por conversão dos pastos naturais para exóticos. A soja também começa a ameaçar.
Reintrodução. O conhecimento obtido com o projeto já rendeu outros frutos para a proteção da espécie, com a reintrodução na natureza de filhotes órfãos. Em 2014, em Corumbá, uma fêmea, com dois filhotes, tentou escapar de uma inundação e acabou parando em uma fazenda. O proprietário chamou bombeiros, imprensa e, na tentativa de sedar a mãe, ela caiu no rio e morreu.
O Onçafari, apoiado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), pegou os filhotes – duas fêmeas – e iniciou um projeto de reintrodução. Para isso, foi construído um grande recinto, no meio de Caiman, para que os animais aprendessem a caçar e viver sozinhos. Em julho do ano passado, elas foram soltas na natureza. “Elas não diferem em nada quando comparadas às onças residentes da Caiman. Caçam, copulam e suspeitamos que ambas estejam com filhotes muito jovens. Ainda não temos esta certeza, mas seus comportamentos indicam possível presença de tocas”, conta Lilian.
O projeto custou R$ 500 mil e contou com doações de pessoas e empresas. Agora vão tentar uma nova reintrodução de duas fêmeas, desta vez na Amazônia.